terça-feira, 1 de março de 2011

Para compreender a História da Igreja

Ao estudarmos a História da Igreja podemos muitas vezes ficar desconcertados com alguns episódios e com a atitude de alguns filhos da Igreja que não refletem os valores enunciados no Evangelho. E é fato que o historiador católico não deve esconder os pecados dos cristãos, mesmo que sejam contra-testemunho, conforme escreveu o Papa Leão XIII em 1889 a alguns cardeais sobre o estudo da História da Igreja.[1] Estes pecados dos filhos da Igreja fazem parte daquelas provações que a Santa Igreja deverá suportar, à imitação de seu Mestre, até o Fim dos Tempos. Com efeito, até o dia da colheita, o joio estará misturado em meio ao trigo.

Antes de nos aprofundarmos no estudo da História da Igreja, é fundamental que entendamos o que é a Igreja. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo, triunfante no Céu, padecente no Purgatório e militante na Terra. A história como uma ciência humana, naturalmente irá estudar os fatos que se referem à Igreja militante. Mas nunca deve-se perder de vista que é um estudo parcial, incompleto. Mesmo se formos pensar em História Geral, o conhecimento é sempre lacunar, baseado em vestígios que restaram. O conhecimento pleno da História só teremos no Dia do Juízo Final, quanto tudo for encoberto e aí entenderemos as ações de todos os homens e a ação da Divina Providência por detrás de toda a História. A Igreja é, antes de tudo um mistério, que só compreenderemos melhor na consumação do Reino de Deus.

Tendo dito isso, perguntemo-nos: o que deve estudar-se principalmente na História da Igreja? Ora, para isso é necessário lembrarmos qual é a missão da Igreja: tributar culto a Deus e propagar e ensinar a Verdade revelada por Jesus Cristo a todos os povos. Se a função da Igreja é prestar culto a Deus, é importante que o historiador da Igreja estude o desenvolvimento da Sagrada Liturgia ao longo dos séculos em sua diversidade de ritos que, contudo, convergem para a unidade de culto, no sentido de que tudo tem como finalidade última a Deus Pai, por Cristo na unidade do Espírito Santo. É importante também que o historiador dedique-se a observar também a ação missionária da Igreja entre os todos os povos e também a sua função de guardiã do Depósito da Fé, ensinando a correta doutrina e condenando os erros e heresias em todas as épocas. Essa é a missão principal da Igreja e toda obra ou pesquisa que se dedique à História da Igreja, mas não se debruçar sobre esses dois aspectos, o culto divino e a evangelização, será incompleta e mesmo anacrônica, ao tentar compreender a Igreja sem buscar entender como a própria Igreja se reconhece. Sendo a Igreja uma sociedade divina, mas igualmente composta por homes, é lógico que ela exerce influência nessa terra sob a qual caminha peregrina rumo à Pátria Celeste definitiva. O Concílio Vaticano II inclusive ressaltou esse papel da Igreja na sociedade, exercido de forma especial pelos fiéis leigos, de influenciarem com os valores cristãos as estruturas e realidades temporais das sociedades em que se encontrem inseridos (Cfr. Const. Dog. Lumen Gentium, n. 36). Nesse sentido, a História da Igreja compreende também as obras de caridade temporais da Igreja: a fundação de hospitais, casas de caridade, escolas, universidades e mesmo a atuação política e social dos cristãos. Contudo, uma História da Igreja que contemple apenas esses aspectos temporais será certamente imperfeita, pois não se pode analisar a História eclesiástica sem considerar primeiramente a ação da Igreja em vista de seu fim sobrenatural: o culto divino e a evangelização.

A vida do homem sobre a terra é um combate (militia est vita hominis super terram - Jó 7,1), uma luta contínua contra os inimigos de Deus e de nossa santificação. Com a Igreja é a mesma coisa, a Igreja na terra chama-se militante justamente porque está, peregrina neste mundo, a combater o mal que aqui encontra. São Gregório de Tours, no século VI ao escrever a História da Igreja entre os francos escreve que irá narrar a História de uma guerra: dos mártires contra os pagãos, da Igreja contra os heréticos e dos Reis contra as nações adversas (Scripturus bellum regum cum gentibus adversis martyrum cum paganis Eclesiarum cum hereticis) e o santo autor justifica que assim primeiramente professaria sua fé a fim de que ninguém duvidasse que ele era católico (prius fidem meam proferre cupio ut qui ligirit me non dubiet esse catholicum).[2] Assim podemos, a partir disso que escreve Gregório de Tours, considerar que ao vermos na História da Igreja uma luta entre os seguidores de Cristo e os inimigos de Seu Nome e Sua Doutrina (que culminará com a vitória de Cristo no fim dos tempos) estamos de certa forma confessando a nossa fé católica. É preciso olharmos a ação da Igreja no mundo com um olhar sobrenatural.

A fim de que fique mais claro o que digo, usar-me-ei de uma visão que Santa Hildegard de Bingen teve, no século XII, onde se vê claro esse mistério da Igreja na História:



No ano de 1170 depois do nascimento de Cristo, estive durante longo tempo doente na cama. Então, física e mentalmente acordada, vi uma mulher de uma beleza tal que a mente humana não é capaz de compreender. A sua figura erguia-se da terra até ao céu. O seu rosto brilhava com um esplendor sublime. O seu olhar estava voltado para o céu. Trajava um vestido luminoso e fulgurante de seda branca e uma manto guarnecido de pedras preciosas. Nos pés, calçava sapatos de ónix. Mas o seu rosto estava salpicado de pó, o seu vestido estava rasgado do lado direito. Também o manto perdera a sua beleza singular e os seus sapatos estavam sujos por cima. Com voz alta e pesarosa, a mulher gritou para o céu: “Escuta, ó céu: o meu rosto está manchado! Aflige-te, ó terra: o meu vestido está rasgado! Treme, ó abismo: os meus sapatos estão sujos!”
E continuou: “Estava escondida no coração do Pai, até que o Filho do Homem, concebido e dado à luz na virgindade, derramou o seu sangue. Com este sangue por seu dote, tomou-me como sua esposa.
Os estigmas do meu esposo mantêm-se em chaga fresca e aberta, enquanto se abrirem as feridas dos pecados dos homens. Este facto de permanecerem abertas as feridas de Cristo é precisamente por culpa dos sacerdotes. Estes rasgam o meu vestido, porque são transgressores da Lei, do Evangelho e do seu dever sacerdotal. Tiram o esplendor ao meu manto, porque descuidam totalmente os preceitos que lhes são impostos. Sujam os meus sapatos, porque não caminham por estradas direitas, isto é, pelas estradas duras e severas da justiça, nem dão bom exemplo aos seus súbditos. Em alguns deles, porém, encontro o esplendor da verdade”. (Carta à Werner von Kirchheim e à sua comunidade sacerdotal)[3]


Portanto, a visão de Santa Hildegard ilustra claramente e de uma forma simples esse mistério da Igreja e sua relação com os pecados dos seus membros: a Igreja é Santa, Imaculada, sem mancha, bela e resplandecente. Mas os pecados de seus filhos são como manchas e poeira em seu rosto e rasgos em seu vestido, isto é, embora não sejam da Igreja essas manchas desfiguram-lhe a imagem, impedindo os homens de verem com clareza a beleza de seu rosto. Por outro lado, os santos são aqueles que nos mostram com perfeição a beleza da Santa Igreja e é interessante observarmos que durante a História, sempre que há uma grande crise na Igreja, Deus suscita grandes santos que parecem como que colunas a sustentar a Fé católica em todo o seu esplendor, em toda a sua Verdade.[4] Basta pensarmos na intransigente defesa da Fé na divindade de Jesus Cristo feita por Santo Atanásio de Alexandria, na pregação virtuosa de São Domingos e São Francisco em completa obediência ao Papa, no zelo incansável pela reforma dos costumes do papa São Gregório VII ou de Santa Catarina de Siena, da grande caridade de São Camilo de Lérins ou São Vicente de Paulo. Peçamos a Deus uma fé firme como tiveram os santos para que possamos, por detrás das poeiras de nossos pecados, enxergar a beleza desse mistério que é a Igreja, do qual fazemos parte.



Notas:

[1]LEÃO XIII, Papa. Carta aos Cardeais De Luca, Pitra e Hergenhoether sobe o estudo da História da Igreja, 8 de setembro de 1889. Citado em: http://ec.aciprensa.com/a/alejandro6papa.htm

[2]São GREGÓRIO DE TOURS. Historiae Ecclesiasticae Francorum. Livro I, Prólogo. Citado em: SILVA, Marcelo Cândido da. Autoridade pública e violência no perído merovíngio: Gregório de Tours e as Bella Civilia. In: FRIGHETTO, Renan; GUIMARÃES, Marcella Lopes (Org.). Instituições, Poderes e Jurisdições - I Seminário Argentina - Brasil - Chile de História Antiga e Medieval. Curitiba: Juruá, 2007, p. 188.

[3]Este relato de Santa Hildegard foi citado pelo Papa Bento XVI no seu discurso de Natal à Cúria Romana em 20 de dezembro de 2010 ao referir-se aos casos de abusos sexuais por parte de sacerdotes. Para ler o discurso completo, vide: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2010/december/documents/hf_ben-xvi_spe_20101220_curia-auguri_po.html

[4]Sobre esse aspecto da Igreja, gostaria de igualmente indicar as reflexões que meu amigo Felipe Köller fez sobre o discurso do Papa citado na nota 3 em seu blog Peregrinatio: http://felipekoller.wordpress.com/2010/12/20/a-igreja-desfigurada/

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