Gaúcho: forjado em Pólvora e Sangue
Por Dr. Rafael Vitola Brodbeck
Delegado de Polícia em Santa Vitória do Palmar
Há 177 anos, um grito independentista consolidava a epopéia de uma
nação. Longe de ser uma revolta contra o Brasil, a afirmação de um
sentimento de amor ao pago, desprezado, já naquela época, pelo poder
central, a Revolução Farroupilha inscreve-se na história como o
manancial de onde brotam as águas vivas a banhar a alma pampeana.
É bem verdade que o gaúcho não nasceu em 1835, e que, antes da dita
Revolução, outras guerras o acompanhavam. Podemos, de fato, dizer que,
desde a gênese desse centauro das planícies da América do Sul, as
escaramuças lhe fizeram escolta. O gaúcho, seja o riograndense, seja o
rioplatense, vive e se alimenta dos combates. Na Argentina, no Uruguai
ou no Rio Grande, o gaúcho se vê, sempre, às voltas com a guerra: ou
dela participa, ou dela descansa, ou para ela se prepara, quando dela
não cura as feridas.
E na história de cada um dos três povos
gaúchos – ou um só povo gaúcho sob três bandeiras –, o derramamento de
sangue, por vezes injusto, mas, na maioria delas, cercado e abastecido
por um valor maior, se viu não só vivamente presente como cantado em
poesias e payadas, a rememorar seu passado ibérico na luta contra o
mouro invasor.
Se ao gaúcho argentino ou uruguaio outras lutas
falam mais alto, e se mesmo ao gaúcho do sul do Brasil pelejas
anteriores não lhe deixam de marcar o lombo, foi, certamente, a Guerra
dos Farrapos a que mais calou fundo em nossa alma. Já tínhamos, os
riograndenses, tantos sinais das investidas bélicas desde o aparecimento
na pampa desse vaqueano, misto de índio, negro, português e espanhol:
recorridas pelo estabelecimento das fronteiras, defesa das estâncias, e,
é triste constatar, duelos fratricidas, forjaram o espírito gauchesco. E
isso a tal ponto que mesmo a técnica campeira das fazendas é um
arremedo da guerra, e o peão não deixará sua faca e seu revólver nem
mesmo na visita ao bolicho ou no namoro de porteira. A estância era o
castelo feudal dos nossos campos, e os campesinos os soldados sempre
prontos a cumprir seu dever de lealdade pelo patrão. A vida civil, se
existia no Rio Grande e nos países do Prata, era apenas o interstício
entre duras pugnas. O tilintar das espadas, o estouro dos canhões, as
cargas de cavalaria, são, para o gauchismo, a sinfonia que rege sua vida
e acompanha o desdobrar dos acontecimentos mais importantes do
estabelecimento de sua pátria.
O militarismo, pois, faz parte
da vida do homem sulino, ainda que seja paisano. Até os esportes por
aqui são imitação da batalhas: que o diga o estilo aguerrido de jogar
futebol, ou o fato de chamarmos aos uniformes dos jogadores
“fardamento”, ou indicarmos que a função do goleiro é atacar – até a
defesa, que é a atividade do goleiro, se torna um ataque, bem típico de
um povo ativo e altivo.
Não se menospreze, entretanto, por
isso, o poder mítico do decênio heróico. De 1835 a 1845, o Rio Grande de
São Pedro, ao pegar em armas contra um centralismo absolutamente
incompatível com as tradições cristãs de subsidiariedade e
auto-afirmação dos povos, não inaugura, é verdade, nossas guerras nem
funda o gaúcho. Todavia, fixa na mentalidade do sul-riograndense seus
mais altos ideais. A Revolução Farroupilha é a síntese de todas as
guerras da pampa. Se não cria o gauchismo, o consolida, marca
profundamente sua cerviz. Todas as batalhas de antes e todas as lutas
que virão – e não serão poucas, como atestam os sangrentos combates de
1893 e 1923, e até mesmo a unificação das forças políticas do Estado
para a vitória montada a cavalo de 1930 –, conectam-se,
indissoluvelmente, ao manifesto farrapo.
É a Guerra de 35 que
molda o gaúcho, é ela que se torna o combate por antonomásia. Sem ela, o
gaúcho existiria, como, de fato, já existia. Sem ela, o gaúcho lutaria,
como, de fato, já lutava. Igualmente sem ela, porém, ele, ao menos o
gaúcho brasileiro, não seria o que é hoje, e lhe faltaria no peito um
coração como o que bate, tal qual um bumbo legüero, ao contemplar,
hasteado, o pavilhão tricolor e, cintilando, a chama que se inflama nas
centelhas dos galpões Rio Grande afora!
Viva o 20 de Setembro!
Viva a liberdade do povo gaúcho! Que nossa glória e sangue sejam a
exaltação da pátria e o orgulho do Brasil!
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